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Independência financeira e reforma antecipada: o guia para o trabalho ser facultativo

A principal meta financeira dos portugueses deveria ser acumular o suficiente para poder deixar de trabalhar. Depois, só deixa a lida profissional quem quer.

Por David Almas a 28 de setembro de 2022

Não é por acaso que a palavra “trabalho” deriva do latim “tripalium”, que significa “tripálio”, um instrumento de tortura usado para forçar os escravos a produzir.

O trabalho pode ser ainda uma forma de escravatura. Para sobreviver, a maioria das pessoas não tem a liberdade para decidir que não quer trabalhar.

Há muita gente feliz a trabalhar, mas muitos não têm a opção de não o fazer ou de perseguir outra profissão ou ocupação que lhes traga ainda mais felicidade.

Só há uma maneira de se libertarem dessa corrente: atingindo a independência financeira.

A independência financeira é alcançada quando se pode deixar de trabalhar, vivendo-se exclusivamente das poupanças acumuladas: ativos financeiros ou reais, como imobiliário. Algumas pessoas já nascem financeiramente independentes; outros têm de trabalhar muito para lá chegar.

Não confunda independência financeira com reforma antecipada, embora a moda mais recente as posicione na mesma página. Há quem fale do movimento FIRE — do inglês financial independence, retire early —, mas eu prefiro escrever sobre IFRA — independência financeira e reforma antecipada.

Quando se chega à independência financeira, trabalhar passa a ser opcional. Quando se deixa de trabalhar efetivamente — em simultâneo com o registo da independência financeira ou após essa marca ter sido atingida —, opta-se pela reforma antecipada, caso ainda não se tenha chegado à idade estatutária para receber uma pensão.

Este artigo não deseja aconselhar sobre a reforma antecipada. A independência financeira é a meta mais importante nas finanças pessoais. A reforma antecipada é uma questão de estilo de vida.

Quanto é necessário para viver dos rendimentos?

“Um milhão de euros” é a resposta mais frequente que oiço quando pergunto a alguém qual seria o montante a partir do qual se sentiriam financeiramente independentes. Como veremos, para a maioria, é um montante exagerado.

Quando, a seguir, pergunto o que fariam com esse milhão, dizem quase sempre que viveriam dos rendimentos. Será possível?

Se tiver um pé-de-meia de euros, conseguirá retirar rendimentos mensais de 4074,12 euros, assumindo uma rentabilidade anual de 5%. Não será muito? Talvez se consiga viver com menos.

Talvez seja mais intuitivo descobrir quanto dinheiro teria de acumular para conseguir garantir um determinado montante mensal.

Se precisa de euros por mês, então tem de acumular 294 542 euros, assumindo uma rentabilidade anual de 5%. Mesmo assim, este número pode ser exagerado. Até agora, as simulações assumem que nunca toca no capital durante a independência financeira; vive apenas dos rendimentos. Além disso, usa uma rentabilidade anual de 5%. Será correto?

A importância da rentabilidade

A taxa de retorno que consegue nos seus investimentos é crucial. Em algumas circunstâncias, é tão ou mais importante do que a própria poupança.

Como vimos atrás, consegue um retorno mensal de euros se puser 294 542 euros a render à taxa anual de 5%, mas precisaria de 582 571 euros com uma rentabilidade anual de 2,5%. E à sua taxa? Com uma rentabilidade anual de %, consegue um rendimento mensal de 1200 euros se tiver um pé-de-meia de 417 988 euros.

Portanto, se cortar a sua rentabilidade anual para metade, precisará de quase o dobro da poupança para manter o rendimento mensal.

Qual será a rentabilidade que deve esperar das suas aplicações? Historicamente, as ações, no seu conjunto, foram os instrumentos que mais renderam: apesar da sua volatilidade, ganharam cerca de 7% por ano no longo prazo. Não é, todavia, esse o retorno que deve interessar aos aforradores. Para aferir a evolução do poder de compra do património, o que deve ser analisado é a rentabilidade real, isto é, o ganho acima da inflação.

Elroy Dimson, Paul Marsh and Mike Staunton, investigadores da London Business School, compilaram os desempenhos dos principais ativos financeiros de 35 países aos longo de 122 anos. O Global Investment Returns Yearbook de 2022, que publicaram através da unidade de análise financeira do Credit Suisse, indica que, em termos reais, as ações renderam 5,3% por ano, as obrigações ganharam 2,0% e os bilhetes do Tesouro 0,7%.

Na edição anterior do Credit Suisse Global Investment Returns Yearbook, Dimson, Marsh e Staunton previram que o futuro não seria não generoso: a rentabilidade real das ações desceria para 3% por ano e das obrigações para -0,5% por ano. Isso quer dizer que uma carteira igualmente distribuída por esses ativos alancançaria uma retorno real de 1,25% por ano.

Desde essa publicação, as taxas de juro e a inflação subiram. Nas minhas projeções, assumo que a minha carteira pessoal, exposta quase totalmente aos mercados acionista através de um fundo de investimento, terá uma rentabilidade real em torno de 3% após descontar os impostos sobre as mais-valias e os encargos dos investimentos.

Para me proteger, procuro ser pessimista e uso frequentemente 2,5% nos meus cálculos de longo prazo. Sei que não tenho qualquer garantia de obter este retorno, porque o futuro é incerto, mas é a melhor estimativa conservadora que consigo fazer com a informação que tenho hoje.

Se aplicasse o meu dinheiro num fundo de ações caro — uma taxa de encargos correntes de 2%, que é frequente entre os fundos de ações da banca portuguesa, é muito elevada —, a rentabilidade real efetiva que esperaria seria menor. (A taxa de encargos correntes é uma medida dos custos do fundo: é a proporção do património investido que é usado anualmente para pagar a comissão de gestão fixa, a comissão de depósito, a taxa de supervisão, os custos de auditoria e outros custos corrente.) O meu fundo tem uma taxa de encargos correntes de 0,2%.

Infelizmente, isso quer dizer que a expectativa que tenho para as restantes aplicações — seguros de capitalização, planos de poupança-reforma, fundos de pensões, Certificados de Aforro, Certificados do Tesouro, Certificados de Reforma, depósitos a prazo, contas de poupança, fundos de obrigações, fundos mistos, obrigações, empréstimos colaborativos, entre outros — é de rentabilidades reais muito reduzidas ou, mesmo, negativas. Pouco ajudam a aumentar o poder de compra do património no longo prazo e, até, o podem destruir.

Veja noutro prisma: ao optar por um instrumento menos rentável, terá de trabalhar mais anos para acumular uma poupança que renda mensalmente o mesmo.

Não viva só dos rendimentos

Até agora assumimos que nunca mobilizaria o seu pé-de-meia. É uma estratégia possível: viver apenas dos rendimentos e deixar o património para os herdeiros. Contudo, chega-se mais depressa à independência financeira se planear gastar progressivamente o que acumulou durante a vida.

O planeamento da independência financeira com recurso ao património e aos rendimentos desse património é mais traiçoeiro e desagradável: é preciso ter uma ideia de quando morreremos. Só assim é possível traçar uma previsão da longevidade do património.

Normalmente, recomendo a quem desenha o seu plano de independência financeira a prever despesas até aos 94 anos. A probabilidade de uma pessoa celebrar o 94.º aniversário é inferior a 10% para os menores de 76 anos, segundo as tábuas de mortalidade publicadas pelo Instituto Nacional de Estatística. Naturalmente, pode ajustar a esperança de vida consoante o seu estado de saúde e os seus hábitos.

E se for um dos que viverá além dos 94 anos? Não há problema: pode sempre ir ajustado o seu plano financeiro à medida que o tempo passa e que as suas previsões se aproximam de certezas, aumentando a poupança mensal, adiando a independência financeira ou reduzindo a despesa mensal na “aposentação”, por exemplo.

Assim, se planeia gastar euros por mês, a preços de hoje, durante a sua independência financeira, entre os anos e os anos, precisa de acumular 308 720 euros, assumindo uma rentabilidade real efetiva (acima da inflação e líquida de encargos) de % por ano. Se começar agora, aos anos, do zero, precisa de amealhar mensalmente 1312 euros para chegar a esse montante, assumindo a mesma rentabilidade anual.

No entanto, se calhar já tem uma poupança reservada para a independência financeira. E, talvez, tenha direito a uma pensão de velhice.

Quanto esperar de pensão?

Para a maioria das pessoas, a pensão de velhice atribuída na idade de aposentação prevista na lei é uma “média” dos salários (ajustados pela inflação) ao longo da carreira.

E a sua pensão? Dependerá do que fizer depois de atingir a independência financeira. Se se decidir pela reforma antecipada — ficando alguns anos sem descontar até solicitar a pensão estatutária —, então a sua futura pensão de velhice será penalizada no cálculo da “média”.

O simulador de pensões da Segurança Social Direta é uma boa fonte de informação: projeta a sua pensão se continuar a sua carreira profissional até à idade estatutária de aposentação. (O número que interessa é o “valor correspondente nos dias de hoje”.) Quanto mais próximo da idade estatutária decidir a sua reforma antecipada, mais próxima será a pensão do valor estimado pelo simulador da Segurança Social.

Até onde pode baixar a pensão? Não pode reduzir-se além da chamada “pensão mínima”, que, em 2022, é de 278,05 euros. Por isso, conte com uma pensão entre 278,05 euros, a preços de hoje, e o “valor correspondente nos dias de hoje” fornecido pelo simulador da Segurança Social. Será mais próxima do mínimo quanto mais cedo se decidir pela reforma antecipada.

O truque não é só poupar; é não gastar

Com uma estimativa de pensão consegue traçar um plano de independência financeira mais completo:

O que quer dizer “a preços de hoje”? Significa que os montantes devem ser atualizados anualmente ao mesmo ritmo do aumento dos preços, isto é, à taxa de inflação.

Normalmente, quando as pessoas poupam uma parte dos seus rendimentos pensam apenas em como esse dinheiro capitalizará para o futuro. Mas há outro benefício: ao poupar, estão também a baixar o seu consumo, habituando-se a viver com menos dinheiro. Esse hábito conduzirá a menos necessidades financeiras no resto da vida. Logo, o pé-de-meia essencial para a independência financeira será menor.

Experimente reduzir a despesa mensal durante a independência financeira na simulação anterior: muita vezes, basta reduzir em 10% para baixar o esforço mensal de poupança para menos de metade.

Visualização da sua independência financeira

A maior dificuldade em desenhar um plano de independência financeira é perceber a sensibilidade da estratégia às múltiplas variáveis. Em quantos anos consigo antecipar a independência financeira se alcançar uma rentabilidade anual 0,1 pontos percentuais superior? Se aumentar a poupança mensal em 10 euros, acumulo dinheiro para quantos mais anos? Se os futuros governos adiarem a aposentação estatutária para os 70 anos, tenho de diferir a reforma antecipada?

A figura interativa em baixo procura resolver esse problema. Selecione cada uma das nove variáveis mais importantes para a independência financeira pressionando nos na base do gráfico. Um pouco acima, pode deslizar o para ajustar o valor de cada variável ao seu plano. O objetivo é definir as variáveis de maneira a que a barra à direita seja superior à da esquerda.

Algumas informações sobre as variáveis:

É apenas um plano financeiro

Opte por uma simulação conservadora: faça de modo que a barra esquerda fique muito abaixo da barra direita na figura anterior. Pode ser, no entanto, desnecessário se não planeia entrar na reforma antecipada em simultâneo com a independência financeira.

Não se esqueça que os cálculos anteriores representam apenas um plano financeiro. Não tem em conta, por exemplo, a volatilidade dos seus ativos, dos seus rendimentos e das suas despesas, como em outras ferramentas de simulação. (Veja, por exemplo, cFIREsim, se quiser avaliar o impacto da volatidade.)

Muitas das suas previsões provavelmente revelar-se-ão erradas, especialmente o desempenho das aplicações financeiras. Será preciso corrigir a trajetória do seu projeto várias vezes ao longo da vida. ★